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Apaixonada pela poesia e pela beleza que há na vida.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Uma Arte

Uma arte

A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que o perdê-las não traz desastre.

Perca algo a cada dia. Aceita o susto
de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.

Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias
ir. Nenhuma perda trará desastre.

Perdi o relógio de minha mãe. A última,
ou a penúltima, de minhas casas queridas
foi-se. Não tarda aprender, a arte de perder.

Perdi duas cidades, eram deliciosas. E,
pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
continente. Sinto sua falta, nenhum desastre.

- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente
amado), mentir não posso. É evidente:
a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre
.

Tradução de Horácio Costa

sábado, 21 de novembro de 2009

Todas as Vidas


Todas as Vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras.
Cora Coralina, doce senhora da cidade de Goiás, fez versos que encantam pela simplicidade e dignidade que carregam. Não há mais o que falar. Cora fala por si.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Elizabeth Bishop

Elizabeth Bishop, poetisa estadunidense, nasceu no estado de Massachusetts e morreu no Rio de Janeiro (1911 - 1979). Passou uma boa temporada no Brasil, onde conheceu, se apaixonou e viveu o amor ao lado Lota Macedo de Soares.
Bishop produziu pouco, pois não acreditava que algo para ser bom precisava ser grande. Mas nem por isso sua obra é sem importância. Muito pelo contrário. Foi sem dúvida um dos maiores expoentes da poesia estadunidense.
Em 1976, foi a primeira mulher a receber o prêmio International Neustadt Prize for Literature (Prêmio Internacional Neustadt de Literatura). Também foi agraciada com os prêmios Pulitzer, Nacional Book Award (Prêmio Nacional do Livro) e National Book Critics Circle Award (Prêmio Nacional do Círculo dos Críticos Literários).
Aos poucos irei deixando por aqui a arte dessa extraordinária mulher.

"Juntas, coladas, a noite toda
As amantes estremecem
durante o sono,
Próximas como duas páginas
do mesmo livro
Que se lêem no escuro
Cada uma sabe a outra
De cor, minuciosamente,
Da cabeça aos pés"

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Ao Espelho

O que mais me aproveita
em nosso tão freqüente
comércio é a tua
pedagogia de avessos.
Fazem-se em nós desfeitos
as virtudes que ensinas:
o brilho de superfície
a aprofundidade mentirosa
o existir apenas
no reflexo alheio.
No entanto, sem ti
sequer saberíamos
o outro de um outro
outro por sua vez
de algum outro, em infinito
corredor de espelhos.
Isso até o último
vazio de toda imagem
espelho de um si mesmo
anterior, posterior
a tudo, isto é, a nada.

José Paulo Paes (1926-1998), poeta, escritor, crítico e ensaísta brasileiro.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Uma alegria para sempre

As coisas que não conseguem ser
olvidadas continuam acontecendo.
Sentimo-las como da primeira vez,
sentimo-las fora do tempo,
nesse mundo do sempre onde as
datas não datam. Só no mundo do nunca
existem lápides... Que importa se -
depois de tudo - tenha "ela" partido,
casado, mudado, sumido, esquecido,
enganado, ou que quer que te haja
feito, em suma? Tiveste uma parte de
sua vida que foi só tua e, esta, ela
jamais a poderá passar de ti para ninguém.
Há bens inalienáveis, há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte de tua vida presente
e não do teu passado. E abrem-se no teu
sorriso mesmo quando, deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.
Ah, nem queiras saber o quanto
deves à ingrata criatura...
A thing of beauty is a joy for ever
- disse, há cento e muitos anos, um poeta
inglês que não conseguiu morrer.

Poema de Mário Quintana para Elena Quintana, sua sobrinha-neta e única herdeira de sua obra.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Canção na plenitude

Canção na plenitude
Lya Luft


Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

Extraído do livro "Secreta Mirada", Editora Mandarim - São Paulo, 1997, pág. 151.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Quando te vejo

Quando eu te vejo
Quando eu te vejo, penso que jamais
Hermíone foi tua semelhante;
que justo é comparar-te à loura Helena;
não a qualquer mortal;
oh eu farei a tua formosura
o sacrifício dos meus pensamentos,
todos eles, eu digo, e adorarte-ei
com tudo quanto eu sinto.

Safo nasceu em Mitilene, an Ilha de Lesbos. Foi uma poetisa apreciada na antiguidade. Foi elogiada por Platão e foi citada em odes por Alceu, Horácio e Ovídio.

domingo, 1 de novembro de 2009

Novembro

Novembro
(Bruna Lombardi)

"As amarílis eram mais altas do que nós. E muito
mais sábias. Tirávamos fotografias inocentes e
brincávamos de náufragos. Mas nunca fomos
além da primeira curva. Da primeira pedra.
Sabíamos zumbir e o ar da tarde nos trazia
desejos estranhos.
Sabíamos a hora das lagartixas e respeitávamos
esse ritual sem palavra.
Você colecionava caracóis e isso dava um sentido à
[vida.
Eu não sei que tanto medo eu tinha que te pedia
coisas impossíveis. Ir pra saturno, adivinhar-me o
sonho, romper as barreiras da carne, comer uma
fruta amarela pequenina que eu comi uma vez e não
sei o nome, dizer se eu vivi em outro tempo e qual.
Só te pedia coisas impossíveis. Sentir exatamente o
que eu sinto o capim agridoce a nostalgia de coisas
que eu não vi. Coisas impossíveis.
Não sei se o medo era do mergulho ou de voltar
à tona. Mas as noites lá eram mais interiores.
Coisas da alma.
Besteiras. E nós gastávamos melhor essas
palavras. Coisas de infinito. De quem não sabe o
que são estrelas. Nós que pomos estrelas no
prato, na cama. Tudo reflete. Nós não sabemos
nada. Nem de estrelas nem de alma. Não sabemos,
somos pequenininhos, pequenininhos, menores
do que as amarílis.
De noite do que os vagalumes."