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Apaixonada pela poesia e pela beleza que há na vida.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Natureza Morta

Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, hein? a ave na parede
Mas conservaram os meus olhos
É verdade que eles estão parados.
Como os meus dedos, na mesma frase.
As letras que eu poderia escrever
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!

Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo.
Os namorados passando, passeando,
Os ventres estourando
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!

Procurei acender de novo o cigarro.
Porque o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!

Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Si eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém...
Nem a presença dos corvos.

Pagu - Patrícia Galvão (1910-1962)

quarta-feira, 17 de março de 2021

Saudade

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?
De quem é esta saudade,
de quem?
Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...
E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...
De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?

Gilka Machado (1893 - 1980)

Foi uma das primeiras mulheres brasileiras a escrever com toque de erotismo, mesmo numa época na qual a repressão, em especial sobre o sexo feminino, era grande. Seu trabalho era considerado um escândalo e, por vezes, imoral. 

Contudo, o que Gilka queria era que as mulheres fomentar nas mulheres o desejo de  participarem dos debates sociais e políticos.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Separação

Eu me separei do meu passado
Eu me separei da primeira pessoa
Eu parti partido e me reuni à parte.
Eu me separei do gran-finale
Eu me separei do mundo caduco
Separei a pessoa do personagem
Eu me separei do crochê da vingança
Eu me separei de velhos inimigos
Eu me divorciei da culpa
Rompi com os movimentos separatistas
Minha cabeça resolveu me dar as costas
Meu corpo pediu separação de corpos
Eu me separei da casa própria
Eu me separei do nome próprio
Eu me separei da própria idéia de separação
Augusto Massi

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Coração sobre cama

Se de repente acordo
é madrugada
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Laura Liuzzi
surpreende o coração
descansa sobre os lençóis
exausto
não tenho sede nem sono
e nem mais coração.
Se acordei e é madrugada
era pra ver você
que não está nesta cama.
 
Enquanto canto bem baixinho
os batimentos desaceleram
lentamente, quase imperceptível
até a voz sumir entre os lençóis.
 
Esperaremos a manhã
o coração e eu
e os jornais o carteiro as babás
colocarão as coisas no lugar:
o coração no peito
você à distância
os lençóis na lavanderia.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

eu durmo comigo

eu durmo comigo
deitada de bruços eu durmo comigo
virada pra direita eu durmo comigo
eu durmo comigo abraçada comigo
não há noite tão longa em que não durma comigo
como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo
eu durmo comigo debaixo da noite estrelada
eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário
eu durmo comigo às vezes de óculos
e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo
e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir ao lado

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Angélica Freitas

domingo, 4 de novembro de 2018

Aqui morava um rei

Ariano Suassuna
Ariano Suassuna
Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.
Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.
Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.
Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.